A voz da favela
(ou nas margens da Marginal)

Carolina Maria de Jesus. Foto de Audálio Dantas
publicada na primeira edição de Quarto de Despejo
(1960)
Você vai ler
uma história escrita por Carolina Maria de Jesus
,
escritora que, nos anos sessenta
do século XX, agitou o cenário cultural brasileiro. Negra,
catadora de papel e favelada, Carolina não correspondia ao perfil
tradicional de escritor. Ao menos do escritor brasileiro até aquela
época.


O episódio
por meio do qual conseguiu publicar seu primeiro livro e tornar-se escritora
já parece história de romance: Audálio Dantas
,
jornalista do Diário de São Paulo, ao fazer uma reportagem
sobre um playground próximo à favela do Canindé
conheceu Carolina, que lá morava. A favela ficava onde hoje é
o estádio da Portuguesa de Desportos na Marginal do rio Tietê,
na cidade de São Paulo. Chegando lá, Audálio ficou
sabendo que a moradora de um dos barracos estava escrevendo um livro.
Ficou curioso e foi procurar a escritora. Conheceu uma bela negra, alta
e magra, com três filhos, cercada de cadernos velhos encontrados
na rua e que ela ia enchendo com histórias, poemas e peças
de teatro.

O jornalista ficou
impressionado com a quantidade e com a qualidade do material e conseguiu
editor para o diário de Carolina, efetivamente publicado em 1960
pela Editora Francisco Alves, com o sugestivo título Quarto
de Despejo: Diário de uma Favelada
.

Fazia tempo que Carolina
queria publicar um livro. Na favela em que morava, a divulgação
desta sua intenção funcionava como uma espécie de
"ameaça": Carolina dizia a todos que de alguma forma
a agrediam que "ia botar no livro" o que estavam fazendo com
ela. O livro, quando publicado, efetivamente chocou e assustou muita gente,
caindo como bomba no cenário brasileiro da época. Quem era
aquela negra que, na linguagem dos despossuídos e dos desescolarizados,
trazia para um livro o testemunho da vida nas ruas, o depoimento do dia-a-dia
de uma mãe solteira?
Pela qualidade de
seu texto e pela inovação que representava no mundo das
letras, Carolina foi uma das autoras brasileiras mais traduzidas nos anos
sessenta e setenta. Sua história correu mundo em várias
línguas
.

Os textos publicados
no livro, no entanto, eram apenas uma pequena parte de seus escritos.
Depois da estréia, Carolina publicou outros livros, todos de recorte
documental e autobiográfico. Sua ficção e seu teatro,
registrados nas mais de 4.500 páginas manuscritas que ocupam 37
cadernos, continuam praticamente inéditos. Uma seleção
de sua poesia foi publicada, em 1996, pela Editora da Universidade Federal
do Rio de Janeiro
.
Para ler alguns poemas desta antologia clique aqui
.



Eustáquio Neves. Sem Título. Série Caos
Urbano. Belo Horizonte, MG, 1997
Quarto de Despejo
antecipou o gênero "depoimento" e "testemunho"
que, no final do século XX, tanto encanta leitores e estudiosos
da literatura. No caso dos diários de Carolina, no entanto, ao
desejo de conhecer a vida alheia soma-se um outro fator de interesse:
o cotidiano que seu livro devassa é muito distinto daquele em que
vivem seus leitores. Já pelo título da obra de estréia,
o leitor percebe que vai adentrar lugares aos quais não está
habituado. Quarto de Despejo promete e traça uma cartografia
de espaços degradados, relacionados a restos, a desordem, a coisas
que ninguém mais quer. A própria Carolina desvela a metáfora
que serve de título ao seu livro:
A vontade de conhecer
e entender o outro, na busca por um mundo mais justo manifesta-se com
freqüência nos anos sessenta, talvez na esteira da vitoriosa
revolução socialista cubana
.
Também nessa época intensifica-se o movimento feminista,
passando as mulheres a exigir condições de vida e de trabalho
iguais às dos homens. Veja na cronologia
alguns eventos ligados ao feminismo. Ainda que muito tenuemente, começa-se
a pensar que, embora sejamos todos diferentes (mulheres e homens, negros
e brancos, brasileiros e europeus) devemos ser todos tratados de forma
igual, devemos ter todos os mesmos direitos e oportunidades.

Clique aqui para acessar
o trecho
autobiográfico. Ouça a oralização do trecho
pela atriz Dirce
Thomaz dos Santos. 
Luiz Paulo Lima. Cara-Pintada, São Paulo SP, 1992


Luiz Paulo Lima. Cara-Pintada, São Paulo SP, 1992
Minha Vida
Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus
(...)
Eu estava com sete anos e acompanhava a minha mãe por todos os
lados. Eu tinha um medo de ficar sozinha. Como se estivesse alguma coisa
escondida neste mundo para assustar-me. Eu ainda mamava. Quando senti
vontade de mamar comecei a chorar.
“Eu quero irme embora!
Eu quero mamar!
Eu quero irme embora!”
A minha saudosa professora D. Lanita Salvina perguntou-me: “Então a senhora ainda mama?”
“Eu gosto de mamar!”
As alunas sorriram.
“Então a senhora não tem vergonha de mamar?“
“Não tenho!”
A senhorita está ficando mocinha e tem que aprender a ler e escrever, e não vai ter tempo disponível para mamar, porque necessita preparar as lições. Eu gosto de ser obedecida! Estais ouvindo-me D. Carolina Maria de Jesus?”
Fiquei furiosa, e respondi com insolência.
“O meu nome é Bitita. Não quero que troque o meu nome.”
“O teu nome é Carolina Maria de Jesus.”
Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome.
Que tristeza que senti. Eu não quero este nome, vou trocá-lo por outro.
A professora deu-me umas reguadas nas pernas, parei de chorar. Quando cheguei na minha casa tive nojo de mamar na minha mãe. Compreendi que eu ainda mamava porque era ignorante, ingênua. E a escola
esclareceu-me um pouco.
Minha mãe sorria dizendo:
“Graças a Deus! Eu lutei para desmamar esta cadela e não consegui.” Minha mãe foi beneficiada no meu primeiro dia de aula. Minha tia Oluandimira dizia:
“É porque você é boba e deixa esta negrinha te dominar.”
“Eu quero irme embora!
Eu quero mamar!
Eu quero irme embora!”
A minha saudosa professora D. Lanita Salvina perguntou-me: “Então a senhora ainda mama?”
“Eu gosto de mamar!”
As alunas sorriram.
“Então a senhora não tem vergonha de mamar?“
“Não tenho!”
A senhorita está ficando mocinha e tem que aprender a ler e escrever, e não vai ter tempo disponível para mamar, porque necessita preparar as lições. Eu gosto de ser obedecida! Estais ouvindo-me D. Carolina Maria de Jesus?”
Fiquei furiosa, e respondi com insolência.
“O meu nome é Bitita. Não quero que troque o meu nome.”
“O teu nome é Carolina Maria de Jesus.”
Era a primeira vez que eu ouvia pronunciar o meu nome.
Que tristeza que senti. Eu não quero este nome, vou trocá-lo por outro.
A professora deu-me umas reguadas nas pernas, parei de chorar. Quando cheguei na minha casa tive nojo de mamar na minha mãe. Compreendi que eu ainda mamava porque era ignorante, ingênua. E a escola
esclareceu-me um pouco.
Minha mãe sorria dizendo:
“Graças a Deus! Eu lutei para desmamar esta cadela e não consegui.” Minha mãe foi beneficiada no meu primeiro dia de aula. Minha tia Oluandimira dizia:
“É porque você é boba e deixa esta negrinha te dominar.”
(...)
In: JESUS, Carolina Maria de. Minha vida...: prólogo. In: BOM
MEIHY, José Carlos Sebe; LEVINE, Robert M. Cinderela negra:
a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. p.173-174.
Trecho reproduzido, com alterações em: JESUS, Carolina
Maria de. Diário de Bitita.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 123-124. (Ficção Brasileira).
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 123-124. (Ficção Brasileira).
Nenhum comentário:
Postar um comentário