Roberto Amaral
A História não se repete, mas no Brasil ela é recorrente, porque, na
culminância de todos os fatos construtores de nossa vida política se sobrepõe o
acordo das elites contra os interesses do povo. A este, figurante em
espetáculo no qual faz ‘escada’ para o ator principal cabe, quando muito,
um lugarzinho na ‘geral’, do teatro, às vezes do circo, para assistir os donos
do poder traficar em seu nome.
Com o povo nas ruas, as ‘elites’ decidem nos gabinetes de Brasília e nos
escritórios da Avenida Paulista. Assim sempre foi e tem sido, desde 1822,
passando pela República, um movimento de militares, poucos, meia dúzia de
oficiais generais, passando pelas sucessivas insurreições dos ‘tenentes’,
pela ‘revolução’ de 1930 e pelo ‘Estado Novo’, um conluio entre o presidente
civil e constitucional com oficias que nos impôs oito anos de ditadura;
assim foi na queda dessa mesma ditadura, operada pelos generais que a
haviam constituído; assim no golpe de 1954 (quando ao povo, finalmente nas
ruas, restou, apenas, chorar seu líder morto); assim nas quarteladas dos
anos 50 e nos golpes de 1955 e 1964, ‘assistidos’ por um Congresso
genuflexo.
Tudo em nome do povo, mas jamais com o povo ou pelo povo.
Desta forma e por tudo isso, tivemos a instauração da ditadura
militar-tecnocratica-empresarial-midiática de 1964, a ditadura dos donos
do poder, os donos de sempre, porque deles é a palavra final e,
vencedores, a colheita das batatas. E assim seria (triste maldição de
deuses perversos) na suada redemocratização de 1984. Porque o ditador podia
sair pelas portas dos fundos do Palácio do Planalto (simbolismo para estudo dos
exegetas), mas a nova ordem não podia derrogar a ordem vencida.
Ao contrário de gregos, espanhóis, argentinos, chilenos e uruguaios, que
romperam com o regime militar, haveríamos de com seus remanescentes cohabitar.
Com o povo nas ruas e as tropas nos quartéis, implodido o colégio eleitoral
montado pela ditadura para preservar-se, eleito Tancredo, a ruptura com a ordem
vencida foi substituída pela transação, mediante a qual o regime militar
derrotado se projetou no regime democrático constitucional-civil
vitorioso, construindo “o modelo penosamente negociado (grifo meu)
do transformismo brasileiro”, na frase de Fernando Henrique Cardoso, em
palestra no ‘III Fórum Cone-Sul’ (maio de 1986)[2]. Nessa mesma
intervenção, o ex-presidente revela a existência de uma ‘Carta compromisso’, a
qual, acrescentamos nós, teria assegurado a posse tranquila, não mais de
Tancredo mas de Sarney (isso é outra história, bem brasileira…). FHC, então
senador da República pelo PMDB de São Paulo e ainda sociólogo, não revela
os negociadores da Carta-transação, nem quem a firmou. Não se sabe onde está
guardada, quem vigia seu cumprimento. Suspeita-se que o sociólogo teria sido,
até pelos seus dotes confrontados com os dos generais, seu principal
redator. Escriba ou não, o ex-presidente lembra, ainda, que “tanto as eleições
diretas quanto a Constituinte foram jogadas para o futuro e a convocação da
Assembléia Nacional Constituinte foi feita, conforme a Carta Compromisso, sem
que houvesse a ‘exclusividade’, quer dizer os representantes serão (foram)
eleitos como deputados e senadores, funções que acumularão (acumularam)
com a de constituinte’. (…) A regra, portanto, foi a da postergação e da
indefinição da ordem político-institucional. Assim, a transição lenta e
gradualíssima de Geisel presidiria o primeiro governo civil. Assim mais uma vez
se realizaria a sina que persegue nossa história: a conciliação substituindo
a ruptura, o ‘jeitinho’ dando voltas à História.
Entre a anistia e a inesperada posse de Sarney (o presidente do partido
do governo militar eleito vice-presidente na chapa da oposição civil)
estava/estaria (leitmotif da ‘Carta’?), a garantia, jurada pelos
militares, de respeito ao colégio eleitoral rompido pela pressão popular.
Sabe-se que Tancredo Neves adiou seu tratamento, ao preço da própria morte, com
receios, que não deveriam ser infundados, de a transação não ser respeitada.
Sabe-se, é a lição dos fatos, que a Constituinte evitou mecanismos ensejadores
de qualquer sorte de apuração de responsabilidades militares.
Sobre os crimes políticos, sobre os crimes comuns.
Sabe-se que ninguém foi punido.
Mas as Forças Armadas (estaria esse direito contido na transação?)
continuaram defendendo a legitimidade do golpe de 1964, mesmo pela voz de
oficiais generais em comando, e até por insólitas ‘Ordens do dia’ emitidas todo
31 de março, o que é inaceitável, tanto quanto é inaceitável a
resistência à criação, constituição e funcionamento da Comissão da
Verdade (cujas atribuições desde sua origem intentam limitar), Comissão que a
ninguém ameaça, pois seu escopo é permitir que a nação conheça uma parte de sua
História. Sombria que seja. Não lhes basta, aos militares, fardados ou
não, a impunidade; exigem o silêncio, a borracha ou a tesoura.
Assim, constrangem o poder civil a que estão constitucionalmente
subordinados.
Não resta dúvida seja quanto a existência de crimes, seja quanto a
responsabilidade do Estado, reconhecida pela ‘Lei dos desaparecidos’ (lei nº
9.140/95), pois nenhum ato de tortura ou assassinato foi cometido sem a sanção
da cadeia de comando. Não se quer, mais, discutir os crimes políticos representados
pelo ataque à ordem constitucional, à soberania popular e à democracia
representativa. São águas que não mais movem moinho. O que a sociedade quer é
conhecer os crimes comuns praticados contra cidadãos sob a custodia do
Estado, praticados em dependências do governo, por funcionários
públicos civis e militares em serviço. Nas masmorras, cidadãos indefesos,
vitimas de sequestros e submetidos a prisão ilegal, foram torturados, um sem
número deles assassinados, e seus corpos ocultados. São os ‘desaparecidos’,
eufemismo insuportável e desrespeitoso. A Comissão da Verdade, que até hoje não
foi constituída, não vai apurar autorias, julgar ou punir. Vai apenas (e isso é
um mínimo minimorum), fazer um inventário. Não podemos punir, como fizeram e
fazem argentinos e chilenos, vá lá. Mas não podermos sequer conhecer os
fatos, já será caminharmos para as raias do absurdo.
É irrelevante que dirigentes de clubes recreativos e oficiais de pijama
digam isso ou aquilo. Grave é quando o pronunciamento vem da caserna. A Secretaria
de Comunicação do Exército, já no governo Lula (2004) lembra a jornalista
Miriam Leitão em artigo recente[3], a pretexto de
responder a jornal brasiliense que publicara foto que supostamente seria de
Vladimir Herzog (assassinado nas dependências do II Exército, SP, ainda na
Presidência do Gal. Geisel) emite Nota (que não fora previamente submetida ao
Ministro da Defesa, o embaixador José Viegas) em que justifica a tortura e o
assassinato de presos políticos, tortura que o herói da distensão defenderia em
suas memórias. O Exército não se retratou e o ministro pediu demissão. O
general comandante da força ficou no cargo.
A questão não é exclusivamente de hierarquia, mas, perigosamente
ideológica, e isso é grave. Passados 40 anos, muitos militares continuam
pensando como pensavam em 1964 e continuaram pensando durante toda a ditadura e
continuarão pensando se a democracia não alterar o conteúdo de sua formação
autoritariamente anacrônica. Quando descobrirão que a Guerra Fria acabou?
As Forças Armadas precisam
se livrar de um passado indefensável e caminhar ao lado da sociedade brasileira
na construção desse novo pais. Isto é o que todos desejamos.
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